segunda-feira, 9 de março de 2015

- Imponderável




  O Imponderável sempre bate à porta. Por educação, pois é sabido que tal fantasma não se prende por muralhas que tentamos forjar nessa ânsia por controle de nossas vidas. Bate à porta, entra, se aloja; numa espécie de paz que, de tão pacífica, nos tira dos eixos e dá de presente dores e frios na barriga.
    O Imponderável, por mais paradoxal que seja, é tão previsível... Não é segredo que o acaso - para os céticos - ou destino - para os utópicos - vem sempre como uma forma de nos provar que não podemos controlar essa mistura de passar do tempo, tomada de experiências e deterioração do corpo que é chamada de vida. Assim, de certa forma, sempre esperamos a surpresa.
    O Imponderável é a surpresa. A surpresa que se aguarda, hóspede ilustre: Se lustram os móveis, se perfumam os cômodos, se regam as flores - o corpo como morada em espera. Hóspede que mora ao lado, mas vem de malas e cuias: malas com seus sorrisos, cuias com suas derrotas, e apenas uma das partes é deixada em sua visita.

O imponderável me bateu à porta. Vendaval de brisa suave, enchente de águas mansas - veio paradoxal aos meus domínios, se apossou do cômodo principal. Deixou as malas, levou as cuias e foi-se embora assim como chegou, com sua paz de dar calafrios.
Agora rego as flores, lustro os móveis e espero: que venha novamente o ilustríssimo Imponderável.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

- despida

Abre a capa,
tira a máscara:
não tem ninguém lá fora.
Só você,

ai dentro,
se espreguiçando,
dando bom dia 
- um bom dia mau humorado.
Esquece o sorriso
falso, mal dado.
Deixa pra lá
o mal trato atravessado
na garganta, arrastado.
Fecha os olhos,
esquece o gracejo da manhã,
o fogo aceso e mal apagado.
Deixa de lado o descaso
e a lágrima que devia ter rolado.
Põe os pés no chão.
Sente o frio de dentro,
de fora, pouco importa.
Mas sê o que é.
Desnuda.
Sem manta, sem nada.
Sem o que é
quando não é o que se é.
Olha no espelho da alma.
Reconhece?
Então dá a mão e não solta:
Você está viva e de volta.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

- resgate

Me tire de mim
Me tire da teia
de solavancos e barrancos
Me tire o nó
da garganta, da voz, do sopro
nó das pernas, nó das penas
Cárcere privado em corpo semi aberto
Me tire do fogo
fogo de enxofre, fogo etílico, fogo ruivo
Me tire o sal
de água, dos olhos, hipertonica
Me tire de mim
Socorra o que resta 
risos velhos, restos de festa
Me dê uma fresta 
ar de renovo, um pouco de gosto
Me permita visão 
ao fim cegueira branca, cela branda 
Me tire de mim 
Me mostre o caminho
entrada franca ao acaso, destino
Me tire o castigo
de perseverar
de ser o que deve ser 
de dever ser o que se é
Me tire de mim
De mim!














domingo, 5 de outubro de 2014

- vai, tempo

vai, menina
vai brincar de ser adulta
                de sonhar com vestidos de festa
                de desenhar castelos na areia
                de pensar em alma gêmea
                                     cachorro, gato e dois filhos

vai, garota
vai pensar numa vida única a viver
                na imagem que quer formar
                nas pessoas a agradar
                nos desejos a esconder
                                   amor, carne e sua impossível união                                             

vai, mulher
vai lidar com a realidade
                   o sonho recente frustrado
                   o prazo de entrega apertado
                   o pra sempre atrasado
                                        sexo, alento, salário

vai, senhora
vai descansar teu corpo frágil de lutar
                     teu coração mole de perdão
                     tua insistência em continuação
                     tua mente cansada em esperar
                                                       pela ligação, pelo carinho, pela mão.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

s.o.s

Parem o mundo! Parem as máquinas!
Parem o microfone e a verdade deflagrada!
Parem a seca e a indústria da desgraça!
Parem o breque do livre na catraca!
Parem o trem nesse trilho de ganância!
Parem o motor a caminho da vingança!
Eu quero descer!
Eu quero sair!
Eu quero um pingo, resquício de esperança!
Eu quero uma gota, fragmento de mudança!
Onde estão, oito anos, aurora da minha vida?!
Onde estão, sabiás, palmeiras da minha terra?!
Onde está, alcalóide, Pasárgada querida?!
Eu quero um raio, potência pra alma!
Eu quero sopro, vestígio de calma!
Eu quero sair!
Eu quero descer!
Parem os homens na glória do falo!
Parem a defesa do legítimo disparo!
Parem as ruas acamando os pobres!
Parem os narizes dos tantos esnobes!
Parem a mim em estertor de agonia!
Parem os tantos em inércia e apatia!
Eu quero descer! Eu quero sair!
Parem as máquinas! Parem o mundo!

quinta-feira, 31 de julho de 2014

- apenas areia

Como em um piscar, não quis mais ouvir a canção que entoava felicidade.
Retornou àquele poema de Drummond que dizia sobre flores amarelas e medrosas. Sentia-se como uma.
Não mais via graça nas desculpas por ela usadas. Via nelas apenas uma criança amedrontada pelo vislumbre de ser adulta. Cansou-se de se justificar com cansaço, trabalho, estudo, falta de tempo... “quem dita o tempo, afinal?’’, perguntava-se.
Fazia ela mesma seu tempo. Tempo para pensar em amor, tempo para pensar na falta dele. Tempo para estudar, tempo para justificar aos outros a falta dele. Tempo para si, tempo para pensar na falta de si mesma em si. No final das contas, era inteira pensamentos e sabia que não se pode construir casas sobre dunas. Não se pode ser só em mundo metafísico.
Percebeu que pensamento era areia e cansou-se de deserto. Resolveu achar em oásis suas respostas... não mais pensou em quebras-cabeça sociais, labirintos políticos, agonias religiosas. Transportou-se ao mundo físico de caminhadas sob árvores de folhas secas a cair, paixões esporádicas, cafés quentes e sanduíches nas madrugadas. E se viu feliz ao entoar novamente aquela canção que dizia de felicidade.

Certo dia, porém, a lua talvez tenha brilhado de jeito diferente, as marés não tenham andado de acordo com as estrelas, ou até mesmo seu horóscopo possa ter ditado palavras de mudança nos ares... ou talvez tenha sido mesmo aquele seu eu esmagado que resolvera se espreguiçar.
A verdade é que, como num estalar, desanimou-se das caminhadas sob as arvores de folhas secas: Não faziam sentido. Via em si vendas interiores que tampavam seus olhos críticos. Via em seu coração muita hipocrisia, discurso cabide de imagem favorável ao mundo de vitrines em forma de gente. Cansou-se dos oásis. Mas a peregrinação era cansativa, desgastante... O suplício por água era por raras vezes correspondido.
O que permanecia era a constante indagação “o que vale a pena?” e aqueles pra quês e porquês jamais respondidos.
Ainda não tinha respostas.
Tinha em seu bolso as palavras de Drummond sobre o peso do mundo e em sua mente a certeza de ter apenas duas mãos...
Apenas areia em suas mãos.

domingo, 6 de julho de 2014

- olhos metafísicos

Olhos não mentem.
Mentem os sorrisos repletos de dentes,
as pernas entrelaçadas,
as roupas ali jogadas;
mas não mentem os olhos.

Olhos não mentem.
Mentem os apertos de mão demorados,
os abraços de supostos enamorados
as palavras por beijo interrompidas;
mas os olhos não mentem.

O empírico pertence à pele, ao arrepio.
Ao metafísico o tocar não alcança,
não se pode vê-lo pelos olhos dos dedos.

Às janelas da alma cabe os segredos dos sorrisos incompletos,
as mãos dadas e os acenos distantes,
os beijos não dados e os abraços des-esperados.

Os olhos não mentem.
Mas presenteiam com verdade aqueles que a desejam
para, assim,
poderem mentir.